É frequente vermos escritores maduros recomendarem aos mais novos que leiam muito que leiam os autores clássicos. Confesso que o género do terror está um pouco longe das minhas preferências e as últimas experiências que tive, ao opinar sobre uma colectânea que incluía uma divisória dedicada ao género, me deixou mais aterrorizado pela pobreza da escrita do que agradado pela riqueza de conteúdos. Foi pois com alguma renitência que peguei na primeira obra de Mary Shelley.
Devo dizer que, finda a leitura, em boa hora o fiz e melhor ainda percebi porque os escritores com muitas páginas escritas recomendam aos novatos que percam tempo a ler os clássicos. Acontece que por algum motivo chegaram a clássicos e, nisto de livros, dificilmente um livro é de tal forma mau que dá a volta e se torna imortal.
O livro, que se lê num instantinho, desfaz um certo mito enraízado na cultura popular. O monstro nunca é baptizado. Ou melhor, quando nomeado, é normalmente designado por substantivos que traduzem um certo carácter de figura aberrante. Estando a figura do monstro de tal forma entranhada na nossa mente, é com algum espanto que notamos num certo conflito entre o descrito na obra e o formulado na nossa cabeça. O doutor é um jovem que iniciou faz pouco tempo os seus estudos superiores e que quase sem querer descobre o segredo de criar vida. Também a monstruosidade que ele cria está muito longe de ser aquela espécie de frigorífico verde que muitas vezes lhe associamos.
É nestes confrontos entre a cultura popular e a obra escrita que se acaba por retirar ainda outra particularidade. Frankenstein é muito mais do que um simples conto e cresce rapidamente à categoria de um certo ensaio filosófico. Há ali uma certa sombra das consequências dos nossos actos, há ali um certo foco no julgamento baseado nas aparências. Sim, a páginas tantas damos connosco a odiar o monstro e noutras o seu criador. É possível gostar do monstro, é possível mesmo sentir alguma simpatia por ele e isso só é possível porque a escrita sendo simples, nunca resvala para o simplista.
Um pouco mais acima mencionei o uso de vários substantivos para descrever a criatura. É importante que se fale nessa classe de palavras, porque uma das primeiras falhas dos aspirantes a escritores é o recurso a infindáveis listas de adjectivos. Essas listas nesta obra primam pela ausência. Há adjectivos com conta peso e medida, da mesma forma equilibrada que aparecem os trechos descritivos.
Será um pouco precipitado dizer que a leitura desta obra me converteu ao género. Gostei da obra essencialmente porque serviu para fortalecer o meu ponto de vista que a literatura de género serve para arrumar livros nas estantes, afinal os livros dividem-se em duas categorias: os bem escritos e os mal escritos. Ler os primeiros ajuda a perceber como evitar produzir muitos dos segundos. E nos dias de hoje em que, como diz um conhecido, há mais escritores que leitores, seria bom que todos os aspirantes a produtores de obras, parassem de produzir e se dedicassem a consumir os clássicos.