Monday, September 24, 2012

As Atribulações de Jacques Bonhomme - Telmo Marçal



Telmo Marçal não existe. Telmo Marçal é um personagem. Telmo Marçal pode não ser um personagem de nenhum dos contos que escreveu, mas é um homem profundamente amargurado e azedo, dono de uma certa capacidade de passar a sua visão escura da vida para o papel e de o fazer com habilidade, de prender os seus leitores a esse seu negrume projectado nas folhas papel.

Telmo Marçal é um preconceituoso. Telmo Marçal tem contos onde as suas personagens têm uma e uma só camada e são tão carentes de profundidade que nos perguntamos se existirão mesmo. Só que os estereótipos que a personagem Marçal faz desfilar nos seus contos, são os estereótipos que toda uma sociedade criou para culpar o outro, e só o outro, pelas suas falhas.

Telmo Marçal é um pessimista. Não há contos de Marçal que pintem um futuro ou um presente risonhos. O presente está cheio de corrompidos e o futuro de iluminados opressores. O futuro de Marçal é o fruto da lei do mais forte e da bota cardada, das facas longas em noites de cristal, dos campos de indesejáveis eugénicos, preguiçosos limpadores de sanitas, bodes expiatórios dos nossos pecados.

Os leitores de Marçal são personagens que depressa se prendem à prosa do autor. Não é uma prosa elaborada mas é uma prosa eficaz. Uma prosa que provoca tonturas. Uma prosa de arrepios frios. Uma prosa que cresce, que sorve a alegria em seu redor.

A personagem que criou os textos reunidos neste livro tem no entanto vontades que o extravasam. Ela não se quer ficar por contos. A forma como por vezes se perde a descrever os locais onde decorre a história são mais próprios de romances do que de contos. A forma como nos conta o como as suas marionetas chegaram ali é própria de um ser aterrorizado com a ideia de as suas subtilezas não serem compreendidas, é a forma como um ditador faz valer a sua vontade, para que apenas a sua forma de interpretar seja possível e passível. Essa é a grande falha desta obra. A vontade de transformar cada conto num pequeno romance é o que cansa o leitor, o que o faz querer saltar um parágrafo ou sentir que se perdeu no caminho. É quando o autor quer fazer o conto crescer para lá de conto que a imagem formada se torna uma nuvem de fumo tóxico. Não que todos os contos padeçam desse mal, pois entre eles está do que melhor tenho lido recentemente em português, mas esses defeitos estão lá e distraem e quebram o ritmo e o exercício de condensação num só volume de contos escritos para várias fontes ao longo dos anos, sem nenhum tipo de controlo ou cimento entre eles, faz com que seja impossível não verificar como para o final alguns já começam a parecer ou esboços ou uma re-escritura de outros.