Enquanto se espera pelo segundo filme da trilogia d' O Hobbit, deixo aqui aquilo que é a minha opinião sobre o primeiro filme, O Hobbit - An Unexpected Journey (Uma Viagem Inesperada, em português). Levantando um pouco o véu, algumas das queixinhas que serão aqui apresentadas irão, quase certamente, ser repetidas nos próximos filmes. O atraso, pese alguma ronha em escrever, deve-se fundamentalmente a uma recolha de argumentos esgrimidos em conversas por aí.
Nessas trocas de argumentos acabei por formular a páginas tantas uma pergunta que será o ponto de partida para esta opinião. A questão é: se alteras o sentido de uma obra aquando da sua adaptação, a adaptação mantém validade?
Neste caso a pergunta faz (talvez estranhamente) sentido. Isto porque há duas formas de ver este filme: ou como a obra que dá origem a O Senhor dos Anéis ou como a prequela d' O Senhor dos Anéis. Podem parecer a mesma coisa, mas não o são.
Como alguém que já leu as obras várias vezes e que conhece, mesmo que vagamente, o que levou a uma e à outra, encaro O Hobbit como "a obra que dá origem a" e não "a prequela" e isso traduz-se nas frustrações que trouxe do filme.
Essencialmente, eu não acho que O Hobbit seja apenas um penduricalho, uma espécie de volume 0 d' O Senhor dos Anéis.
Ao fim de 33% dos filmes, perto de 55% do livro estará adaptado, e aqui questiono-me se o verbo é mesmo adaptar. Poucos (ou mesmo nenhum) episódios do livro estão conforme o livro (nem sequer o jantar inicial sobrevive à fúria adaptativa). A vontade de adaptar é extensível aos anexos d' O Senhor dos Anéis. Quem pensa que os anexos d' O Senhor dos Anéis serviram apenas para aumentar volume desengane-se! Serviram antes de mais para sugerir coisas giras que podem ser lá enfiadas para o meio sem qualquer respeito pela narrativa.
Numa conversa com um amigo, ele queixava-se que "faltava aquele efeito surpresa de ver a Terra Média à nossa frente". Apesar de perceber o que ele quer dizer, aquilo que senti que faltava foi o olhar de um apreciador da obra. Esse olhar está bem patente n' O Senhor dos Anéis e serve de ponto de partida para se falar um pouco da linha que separa a fidelidade à obra da adaptação.
Enquanto clássico da literatura infantil, O Hobbit apresenta uma estrutura toda ela muito dinâmica, com cada capítulo a corresponder grosso modo a uma aventura, toda ela narrada de uma forma linear e centrada nesse hobbit que parte com um grupo de anões à conquista de um tesouro numa montanha distante. Seria fácil imaginar que a transposição para o cinema seria muito mais fácil do que a d' O Senhor dos Anéis, mais do que pelas diferentes narrativas, mas mais por todo o peso que as emoções têm no segundo, as descrições mais exaustivas de paisagens e a própria complexidade das interacções das personagens entre elas e o mundo que as rodeia. Claramente, quando se começou a falar da expansão de uma obra apresentada num livro (e um volume) para três filmes, adivinhava-se já que se estava a fugir ao que seria normal numa adaptação (especialmente comparando com o facto de os seis livros - em três volumes - d' O Senhor dos Anéis terem dado origem apenas a três filmes). O que ocorre de facto é que se reescreve O Hobbit como uma obra subordinada a O Senhor dos Anéis (quando na realidade sucede o inverso). Esquecer qual das obras é que se encontra subornidada à outra dá origem à necessidade das contextualizações que esta adaptação a si chama. Isto se quisermos assumir as liberdades criativas tomadas como contextualizações e não deturpações, pois tal apenas é possivel se se entender O Hobbit como aquilo que ele não é: uma espécie, repito-o, de capítulo 0 d' O Senhor dos Anéis. O foco do livro não é como Sauron sobreviveu à Última Aliança de Elfos e Homens e da sua re-ascensão. O foco do livro não é de como Bilbo encontra o anel. O foco do livro não é de como os anões andam a fugir de um Azog (ou sua descendência) que morreu anos antes.
Quem apenas vir o filme pensa que O Hobbit existe para que O Senhor dos Anéis possa existir. Repito-o, isso é uma premissa falsa. O Bilbo não decicidiu ir atrás dos anões devido ao apelo do seu lado "Took", ele foi praticamente empurrado por Gandalf e se ele corre porta fora não é por querer aventura é por ter medo das consequências de não honrar o contrato com os anões ao não chegar a horas ao ponto de encontro. Há uma grande importância dada ao "nome das espadas" e esquecemo-nos que a Sting ganhou o seu nome nas Misty Mountains, na fuga do Bilbo de Goblin Town. Há uma necessidade de dobrar a história para o Bilbo ganhar respeitabilidade entre os anões, e esquecemo-nos de um dos momentos em que tal acontece (e em que o anel toma algum protagonismo para tal acontecer). O sentido da história ficou dobrado no momento em que se achou pertinente mostrar o Radagast (e escuso-me de comentar trenós puxados por coelhos) e de como Mirkwood se tornou Mirkwood, de como houve necessidade de mostrar um Conselho Branco (outra vez adaptado) e de como provavelmente se sente a necessidade de vir a mostrar o assalto a Dol Guldur desviando-nos da essência do livro: a busca dos anões pelo seu tesouro e reino perdidos. Arrisco dizer, pelo que já foi revelado, que o Gandalf do início d'A Irmandade do Anel é um banana se ainda não percebeu quem é o Necromante!...
Portanto... O filme enquanto filme mais do que aguentar-se, é uma espectacular obra de aventura, com movimento, batalhas bem coreografadas e que não puxa muito pela cabeça. A fotografia é impressionante e a banda sonora mais uma vez assume o papel de personagem chave. No entanto, chamemos-lhe "Uma viagem inesperada", porque chamar-lhe O Hobbit leva a confusões com um livro cuja narrativa e finalidade diferem largamente daquilo que o autor do filme quis fazer. É um bom filme de aventuras, mas falha a toda a linha enquanto adaptação do livro.