Friday, July 19, 2013

Doces Flagelações, Anónimo


A literatura de cariz erótico (ou pornográfico consoante o grau de moralismo) é algo que terá estado tão dormente quanto a vontade do ser humano em se excitar. Recentemente, no entanto, tornou-se um produto não só de consumo massificado, como até de um certo estatuto. Os mais desatentos poderiam pensar que tal se devia a um recém-descoberto interesse pelas obras de Miller, Nin ou outro autor consagrado. Infelizmente o motivo está abaixo, muito abaixo, da qualidade de escrita desses monstros sagrados.

Por outro lado, estas novas modas literárias tendem claramente para reinvenções da roda. Esse cariz de redescoberta tem a vantagem de fazer com que se descubram textos perdidos em prateleiras dos fundos que assim podem ver a luz do dia. Penso ser o caso deste Doces Flagelações, publicado pela 7 dias 6 noites. Penso porque denoto no livro uma certa ausência de ano de primeira publicação, ou título original, ou referências ao desconhecido autor, qualquer elemento identificativo que permita encaixar a obra temporalmente.

Face a comentários anteriores, poderá este livro ser um clássico esquecido? Dificilmente! Aliás, penso que consoante a interpretação que cada um fizer da dualidade erotismo/pornografia, este livro até poderá tender mais para a segunda do que para a primeira categoria, fugindo muito mais do virtuosismo sensual de Miller e estando muito mais próximo da narrativa libertadora de uma História de O, com este clássico a poder ser a obra que mais definirá a prateleira onde arrumar o livro em apreciação: quem olhar para o clássico de Pauline Rèage como uma obra erótica, então olhará da mesma forma para este livro.

Chamar no entanto nomes clássicos da literatura para a apreciação deste livro acaba resultar num chamar Boogie Nights para uma discussão sobre o "Fim de semana Lusitano": aquilo até se relaciona, mas só mesmo muito vagamente! No entanto, o facto de não estar escrito em troglodita faz com que uma comparação com o impulsionador da moda da literatura de "tau tau" seja infamemente injusta.

Quando digo que não está escrito para trogloditas relembro o comentário anterior que isto não é um clássico esquecido da literatura! É isso sim, uma obra que assume um propósito claro, diferente do de vender um número largo de cópias, e vai direito a ele assumindo que os leitores têm um cérebro plenamente funcional e que não são analfabetos. Exemplos disso é a forma como a adjectivação está reduzida ao essencial e a um bom uso de sinónimos de substantivos, que alternam entre os mais eruditos (púdicos mesmo) e os mais, chamemo-lhes "populares", com várias ocasiões em que a alternância se vai dando em crescendo com o estado de excitação dos intervenientes. Estas duas ferramentas de escrita acabam por evitar o uso de repetições excessivas, o que fazem deste livro uma obra muito fraca para jogos do tipo "um shot de cada vez que".

No que a personagens diz respeito, não há aqui grandes preocupações em dar profundidade às mesmas. Para quem acha que isso é um defeito, sejamos francos, face ao propósito da obra é uma virtude! (Pegando numa analogia anterior, será que o espectador de Fim de Semana Lusitano está preocupado com a profundidade das personagens? A quem respondeu que sim, curem-se!) Assim sendo, acabamos por ter praticamente uma personagem por capítulo da obra, todas residentes numa localidade da Inglaterra Industrial e a obra mais não é do que a forma como estas interagem umas com as outras para satisfazerem os seus desejos, desde os que recém descobertos a outros mais requintados com o passar dos anos, todos uma declarada afronta aos mais acesos discípulos da moral e bons costumes.

Essa afronta, o principal móbil da obra, está logo bem patente no acto de compra do livro, e o seu selo de "proíbida a venda a menores de 21 anos". Faz sentido. Mesmo à luz de uma sociedade que se quer e diz ser mais aberta, mesmo depois do porno-para-mamãs, este livro é para fazer mossa e ser lido às escondidas. De tal forma o é que me questiono mesmo se o autor anónimo será mesmo da altura do livro e não alguém bem mais contemporâneo, tal a forma como o livro consegue chocar as mais púdicas mentes e estimular as mais estimuláveis. A obra caracteriza-se por estar totalmente desligada de uma visão romântica. Aqui é só desejos e a satisfação dos mesmos, qualquer que seja o preço. Os moralismos e as reviravoltas sentimentais ficaram de fora e só perpassou o sentimento quase animalescos do prazer pelo prazer.

É pois um livro politicamente incorrectíssimo. Animais e excreções à parte, penso que muitos desejos mais desbragados encontram lá o seu capítulo, desprovidos de candura ou promessas de redenção. Não fará os leitores comprar mais dois volumes, mas é bem capaz de levar a releituras!