Setembro foi o mês de andar para trás e para a frente, o mês das férias, o mês dos amigos. Foi também o mês em que aproveitei para ver o fenómeno cinematográfico da época estival. Sim, desloquei-me ao cinema para ver A Gaiola Dourada.
Pretendia começar este comentário revelando alguma incredulidade sobre o facto de ser o fenómeno que foi. No entanto dois factores contribuiram, após alguma reflexão, para que esse espanto se afastasse.
O primeiro é que a atitude dos portugueses para com o seu cinema (e se fosse só isso...) fica traduzida pelo comentário que ouvi na fila para comprar bilhetes, e que passo a transcrever:
"-Podíamos ir ver aquele filme português - diz o filho.
-Para quê? - pergunta o pai - Isso qualquer dia dá na RTP e podes ver nessa altura."
Volto a frisar que o diálogo é verídico!
O segundo é que a este filme é filho de uma das grandes escolas, e certamente um dos mais pujantes mercados cinematográficos, senão do mundo, pelo menos da Europa. Escola e mercado justificam a qualidade do produto final. O público alvo deste filme francês é um público habituado a ter qualidade, quantidade e variedade.
Combinando a atitude depreciativa do público com todo um trabalho feito para entreter sem aspirar a grandes vôos, não será pois de estranhar que a Gaiola Dourada passe por um grande evento cinematográfico... em Portugal. (Isto mesmo excluindo uma certa histeria que se demonstra quando alguém de fora fala de nós.)
Confesso que me parece que o filme seja um bocadinho menos do que aquilo que fazem dele. Por outro lado, pode ser exatamente o filme que é preciso. Ou seja, aquilo que não passa de um filme banal do circuito comercial francês, daqueles que se fazem às pazadas, apenas para se ter uma tarde de Domingo bem passada, tem neste caso tem a particularidade de nos, enquanto figura colectiva, tocar e com isso nos levar a querer passar essa tarde numa sala às escuras.
Enquanto filme tem toda uma arquitectura, ao nível do guião, e toda uma fotografia que de facto não são usuais por terras lusas, desenhado como produto de entretenimento alcançável por todos, sem almejar a uma grande reflexão. Assim de repente, a coisa mais parecida que me lembro de ter visto foi A Bela e o Paparazzo, uma espécie de Notting Hill à portuguesa.
Ao desvalorizar o sururu que se fez em torno d' A Gaiola Dourada, não estou no entanto a desvalorizar o filme. Aquilo que em França é um produto de nível mediano, em Portugal passa por um produto de alto valor. Porquê? Bom, em primeiro lugar porque o valor do público está transmitido no comentário daquele pai, que eu citei ali em cima. Sem um público é impossível ter um cinema. De nada vale chorarmos o que não temos, quando não o temos porque não queremos. Quando se vai ao cinema para se ver a "prestação" da Soraia Chaves n' O Crime do Padre Amaro, um dos piores favores que se fez à obra de Eça, e se deixa às moscas O Barão, a única surpresa é ainda haver uns carolas a querer fazer filmes.
Já no caso d' A Gaiola Dourada, o seu triunfo é ser precisamente aquilo que não pretende ser: um tratado de, chamemos-lhe assim, portugalidade. A Gaiola Dourada é o retrato de uma determinada geração de portugueses que fugiram à procura das oportunidades que não tinham em casa. Como tal há de todos os tipos, desde o português que abusa dos portugueses, retratado em pequena escala pelo dono do café, mas que serve de perfeita alegoria para outras situações mais... complexas, temos as gerações envergonhadas dos seus pais, mais envergonhadas do que o próprio meio em que se inserem, temos as coscuvilheiras, temos, no fundo, um pequeno Portugal que se mudou para os arredores de Paris e que guarda todas as virtudes de um Portugal pequeno em que era proíbido sonhar e ousar ser mais. Essa proibição está bem patente e vincada nas personagens principais, também elas bem alegóricas, da mulher-a-dias e do pedreiro, que quando lhes cai uma herança e uma promessa de regresso tranquilo a Portugal, o seu primeiro pensamento é "o que é que os outros vão pensar". É um filme de estereótipos e creio ser impossível qualquer luso-descendente dessa geração de 70/80 não ver ali os pais, os tios, uns primos, os colegas e tantos, tantos outros. É impossível aquela luta dos filhos para que os pais pensem em si não ser reflexo do que se passa em tantas e tantas casas onde filhos criados com acesso a cultura, com escola, com saúde, não tentem agora dar aos pais aquilo que estes se recusam em lhes oferecer.
A Gaiola Dourada não pretende ser esta reflexão sobre como uma geração se castiga, não ousa sonhar, não ousa querer e ainda por cima divide-se entre os que tudo dão e os que tudo invejam. Nessa ausência de pretenciosismo reside o grande triunfo desta obra. Gil Vicente, pai do teatro português, tinha por lema ridendo castigat mores, a rir se castigam os costumes, e é nessa linha de representação que este filme desembarca. Sim, tem aquela cena no Douro, totalmente despropositada e escusada, mas nenhuma caricatura de portugueses ficaria completa, sem o afamado banquete na aldeia.