Há autores que se notabilizaram por escreverem contos. Textos concisos em que o ênfase se coloca nuns aspectos e se deixam os restantes ao cuidado da imaginação do leitor. Compilem-se uns textos num só volume e inevitavelmente salta à vista que uns apelam mais ao leitor do que outros. Uns falam com partes de nós que não sabíamos ter, outros passam por nós como se não os tivessemos lido. Uns são paredes brancas, outros quadros impressionistas, com tantas manchas que formam uma imagem. Multiplique-se o número de autores e o concurso passa a ser entre estilos de escrita pessoais.
Vollüspa, a aguardada antologia a cargo de Roberto Mendes, pretende assumir-se como meio de divulgação para novos autores no campo da Ficção Científica (FC) e do Fantástico (F). Estes rótulos são bonitos e servem para arrumar livros na prateleiras das livrarias, mas pessoalmente prefiro rótulos que vão de "bem escrito" a "desperdício de papel". Enquanto mistura de autores, Vollüspa consegue colocar contos em todo esse leque de rótulos.
Escrevendo enquanto desconhecedor do género (tenho umas noções de Fantasia, que adquiri com Tolkien e Jordan, e de FC, que fui buscar a coisa como Dick e Matheson), penso que Vollüspa se sai bem. Mais do que meio de divulgação de autores, assume-se como uma interessante porta de entrada para novos autores.
Sai-se bem, mas não sem reparos! Por exemplo, a compartimentação dos contos em géneros. Existem três secções: Ficção Científica, Terror e Fantasia. Na minha opinião há contos de FC que cabiam em Fantasia ("Pequeno guia do Céu, de Tristan Sapincourt", de Afonso Cruz e "Eternidade" de João Ventura) e vice-versa ("Uma questão de lugar" de Pedro Ventura). Quanto à secção de Terror, a única coisa de realmente aterrorizante é a forma como os textos se prolongam sem chegarem a lugar algum. Talvez "Enquanto Dormias", de Nuno Gonçalo Poças, pudesse ter lugar na secção de Fantasia, livrando-se das expectativas que o rótulo Terror coloca. Volto a frisar neste ponto que estou longe de ser um especialista de taxonomia literária.
Onde sou especialista é em coisas que me arrepiam os cabelos da nuca e nesse capítulo o prémio "desperdício de papel" vai inteirinho e em exclusivo para Carla Ribeiro. Os diálogos mais forçadamente artificiais de toda a antologia e um uso e abuso de frases iniciadas por "E" (de todos os usos apenas um - um - não me causou arrepios na espinha) fizeram com que a leitura deste conto roçasse a vontade de não acabar de o ler e passar ao seguinte. Quanto ao uso do "E" para começar frases, há formas de o fazer, há ocasiões em que traz maior expressividade ao texto. A forma como Carla Ribeiro o faz indiscriminadamente demonstra que não domina essa técnica. Caso queira aprender, leia um bocadinho mais de jornais (recordo-me assim vagamente que entre o editorial e as colunas de opinião do DN de dia 17 de Novembro há variados bons exemplos) ou leia os contos "A Máquina" (Álvaro de Sousa Holstein) ou "Genesis-Apocalipse" (Roberto Mendes) desta mesma colectânea.
A culpa, no extremo, até pode não ser da autora. A preocupação de escrever com a frase curta, tão típica da literatura anglófona, pode estar na origem. Essa preocupação também é visível nos contos de Afonso Cruz, Roberto Mendes ou Joel Puga, mas nestes casos sem que a minha sensibilidade de leitor saia afectada.
Ao nível de outros contos, "Vermelho" (Regina Catarino) está muito bem escolhido como conto de encerramento para a colectânea. Uma ideia de tremenda simplicidade, executada de igual forma e que deixa no leitor uma sensação de uau. Ao nível de trabalho editorial, de resto, apenas duas notas: o conto de Afonso Cruz pode ser muito bem executado, mas requer uma segunda leitura. Para conto de abertura fica um bocado pesado e penso que o próprio conto ganhava em estar enquadrado por contos do gabarito dos de Luís Filipe Silva ("A queda de Roma, antes da telenovela") e João Ventura ("Eternidade"), duas das mais fortes entradas da colectânea. A separação destes dois teria um efeito benéfico nas restantes entradas, trazendo maior homogeneidade ao nível dos contos. Porque estes podem fazer os outros empalidecer! Nos outros contos, é bem visível a linha que vai d' "A Máquina" (Álvaro Sousa Holstein) até a "A Sala" (Marcelina Gama Leandro). A semelhança de temática e cenário é tal, que podemos perfeitamente imaginar a máquina dentro da sala! Sai por cima, quando comparados, o sentimento de folia da divisão contra o saudosismo vagaroso do objecto.
Os contos que mais me encheram as medidas estão quase a abir e quase a fechar. Contos muito díspares na temática e na forma, mas igualmente satisfatórios na forma como me realizaram enquanto leitor. "Natal®" (Carlos Silva) é um conto curto que nos traz a época festiva num futuro (talvez não muito) distante e simultaneamente uma reflexão sobre a condição humana e penso que até o mais sorumbático dos leitores esboçará um sorriso com o final. Já "Uma questão de lugar" (Pedro Ventura) arrasta-se sem que o leitor se sinta aborrecido, desenvolve as personagens num curto espaço, conta-nos uma história e a páginas tantas o leitor esquece-se que está a ler um conto. Mesmo o final, que pode ser um pouco abrupto para alguns, não parece caído do céu. Pedro Ventura pega no leitor ao colo e leva-o por uma agradável experiência de leitura.
No global Vollüspa sai-se bem como uma porta para a literatura de género que parece querer recuperar algum espaço em Portugal, com um leque variado de autores e com alguns toques de qualidade de escrita misturados com a maturidade de quem sabe que escrever não é apenas por palavras umas a seguir às outras.
PRÉMIOS:
"Vale a pena ter a Vollüspa só para ler isto":
-"O Pequeno Guia do Céu, de Tristan Sapincourt", Afonso Cruz
-"Natal®", Carlos Silva
-"Uma questão de lugar", Pedro Ventura
-"Vermelho", Regina Catarino
"Valor Seguro":
-"Eternidade", João Ventura
-"A Queda de Roma, antes da Telenovela", Luís Filipe Silva
-"A Sala", Marcelina Gama Leandro
"Preciso de Curar Insónias":
-"O Acorde das Almas", Carina Portugal
-"Enquanto Dormias", Nuno Gonçalo Poças
-"A Máquina", Álvaro Sousa Holstein
"Desperdício de Papel":
-"A Queda", Carla Ribeiro