Monday, December 16, 2013

Pano Cru - Pedro Brito


Um pintor com bloqueio de artista, de luto pela mulher que morreu meses antes e pressionado pelo galerista para acabar umas telas. Como sair deste bloqueio e reencontrar a musa inspiradora? Quais as armadilhas do percurso quando nunca se lidou com esse acontecimento marcante?

Uma história que dá umas piruetas valentes, apesar de a dado ponto ser previsível, mas bem montada e orquestrada, a ilustração a preto e branco entre o traço limpinho e as sombras de carvão.

Um bom trabalho a mostrar que os quadradinhos só são para crianças quando os seus autores assim o desejam.

Sunday, December 8, 2013

Mão Direita do Diabo - Dennis McShade



Dinis Machado mostrou-nos com a sua magnum opus, "O que Diz Molero", que a simplicidade da escrita não se encontra relacionada com uma simplicidade de ideias. Só que antes desse simples relatório, já a literatura portuguesa tinha sido presenteada com essa complexa simplicidade de Dinis Machado, através da sua quase homónima personna, através da trilogia das aventuras de Maynard.

Neste "A Mão Direita do Diabo" somos mergulhados nesse mundo de salões escuros donde se sai com o fumo do tabaco impregnado na roupa, guiados por um assassino profissional com uma úlcera, que só bebe leite, ouve música clássica e lê os clássicos, um poço de cultura no mundo abrutalhado de organizações criminosas onde se é pago para nada saber e nada ver.

Só que Maynard gosta de trabalhar sozinho. Não se liga com outros, não segue a carneirada. Maynard é uma ilha de inteligência num deserto de cúpida ignorância. Onde os outros lhe dizem para se juntarem, para se alinharem, ele teimosamente recusa-se. Não admira que o estilo adoptado seja simples. Publicado pela primeira vez em '67, este policial em estilo rasca tinha todos os ingredientes para nunca ver a luz do dia. Não admira que se passe então numa América vaga, onde os mafiosos são todos italianos, onde quem muda de identidade são os maus da fita, e o seu autor um americano desconhecido que não levante suspeitas.

Dinis Machado pode não ter publicado muito, mas o que publicou são páginas que se devoram e nos deixam a salivar por mais. A verdadeira mão direita do Diabo é a que escreve com esta simplicidade tão complexas figuras e nos fazem ler um livro numa noite e ansiar pelo próximo.

Wednesday, November 20, 2013

A Ironia do Projecto Europeu - Rui Tavares



Rui Tavares tem o dom de aproximar pessoas da esquerda e da direita, nestes tempo de clivagem que vivemos. Odiado por uns e outros, as principais razões para esse ódio prendem-se com o seu comportamento aquando do recente naufrágio legislativo do Bloco de Esquerda. Só que Rui Tavares não tem sido incoerente consigo mesmo, não no seu desempenho enquanto euro-deputado. Nesse aspecto Rui Tavares é das poucas vozes que dentro de portas se dedicam a escalpelizar e a pensar as questões europeias.

Este livro, lançado no final de 2012, no auge da crise económica (sem sabermos bem onde estamos na crise política) que abala a Europa, é a sua visão sobre os acontecimentos. É pena, por um lado, que não haja uma figura da direita que se lhe junte, uma voz que fosse com ele em Portugal, o que Cohn-Bendit e Verhofstadt são na Europa e que levou à edição, quase em simultâneo do seu manifesto For Europe.

Na ausência de vozes sonoras a equilibrar a orientação ideológica, fica-nos portanto a voz de Rui Tavares, historiador de profissão e, até às próximas europeias, eurodeputado de vocação. Não um eurodeputado do estilo populista, na boa onda dos Farages desta vida, mas um dos que sentem a Europa. Como historiador que sente a Europa, Tavares dá-nos neste livro aquele que pode ser um óptimo resumo do que tem sido a construção europeia, as suas virtudes e as suas falhas, tudo de uma forma acessível, com uma escrita leve na forma e cheia no conteúdo, que nos faz chegar a meio do livro sem nos apercebermos do tempo a passar, e com a percepção clara de como nos falta saber tanto do mundo em nosso redor.

Nenhuma visão, por mais bem itencionada que o seja, consegue ser desligada das visões pessoais de quem a transmite. Rui Tavares consegue no entanto que as lições de história o sejam e que as suas conclusões pessoais o pareçam, para que o leitor não se confunda. E com isso mostrar que uma escrita ideológica não tem de ser uma escrita doutrinária. Depois de ler este livro eu quero saber o que pensa o outro lado, mas do outro lado ninguém fala.

É uma leitura, em vésperas de eleições europeias, fundamental para portugueses em Portugal e no estrangeiro (lembrar que malta emigrada na UE, vota onde mora), especialmente face ao clima de desinformação que nos rodeia. A verdade é que somos emprenhados pelos ouvidos que a culpa é "de Bruxelas", mas onde começa e acaba a culpa de Bruxelas, e qual das Bruxelas falamos? Não importa o quadrante político, este livro é de leitura obrigatória!

Wednesday, November 13, 2013

The Structure of Scientific Revolutions - Thomas S. Kuhn


A primeira coisa que me apraz dizer sobre este livro é que é um livro antitético: uma leitura leve muito pesada. 

Para um livro que representou uma pedrada no charco na forma como se interpreta a evolução da ciência, lê-lo passados 50 anos não tem o mesmo sentimento de revelação. Em grande parte porque o que ele contém foi interiorizado em sucessivas gerações de cientistas e aspirantes a tal. Não há, para quem tenha tido um ensino científico, um sentimento de ruptura, antes de se rever no que ele descreve. Provavelmente porque sempre foi assim e ele se limitou a constatar o que via.

A leitura do livro pede no entanto, para ser mais dinâmica, que se tenha algum conhecimento científico, nomeadamente ao nível da física, isto porque Kuhn, antes de ser um historiador era um cientista. Essa dupla formação deu-lhe certamente uma vantagem que outros seus contemporâneos não tinham e ajudaram a que ele conseguisse o tal sentimento de criar uma empatia com quem tenha passado pelos labirintos da ciência.

Que o livro tenha perdido o seu tom de nova teoria, sendo absorvido por todos e tornando-se no paradigma da evolução científica, perdendo com essa cristalização o seu carácter refrescante é provavelmente o maior triunfo da obra. Pena que com isso tenha de se remeter para a categoria da curiosidade histórica.

Thursday, October 10, 2013

A Gaiola Dourada

Setembro foi o mês de andar para trás e para a frente, o mês das férias, o mês dos amigos. Foi também o mês em que aproveitei para ver o fenómeno cinematográfico da época estival. Sim, desloquei-me ao cinema para ver A Gaiola Dourada.

Pretendia começar este comentário revelando alguma incredulidade sobre o facto de ser o fenómeno que foi. No entanto dois factores contribuiram, após alguma reflexão, para que esse espanto se afastasse.

O primeiro é que a atitude dos portugueses para com o seu cinema (e se fosse só isso...) fica traduzida pelo comentário que ouvi na fila para comprar bilhetes, e que passo a transcrever:

"-Podíamos ir ver aquele filme português - diz o filho.
-Para quê? - pergunta o pai - Isso qualquer dia dá na RTP e podes ver nessa altura."

Volto a frisar que o diálogo é verídico!

O segundo é que a este filme é filho de uma das grandes escolas, e certamente um dos mais pujantes mercados cinematográficos, senão do mundo, pelo menos da Europa. Escola e mercado justificam a qualidade do produto final. O público alvo deste filme francês é um público habituado a ter qualidade, quantidade e variedade.

Combinando a atitude depreciativa do público com todo um trabalho feito para entreter sem aspirar a grandes vôos, não será pois de estranhar que a Gaiola Dourada passe por um grande evento cinematográfico... em Portugal. (Isto mesmo excluindo uma certa histeria que se demonstra quando alguém de fora fala de nós.)

Confesso que me parece que o filme seja um bocadinho menos do que aquilo que fazem dele. Por outro lado, pode ser exatamente o filme que é preciso. Ou seja, aquilo que não passa de um filme banal do circuito comercial francês, daqueles que se fazem às pazadas, apenas para se ter uma tarde de Domingo bem passada, tem neste caso tem a particularidade de nos, enquanto figura colectiva, tocar e com isso nos levar a querer passar essa tarde numa sala às escuras.

Enquanto filme tem toda uma arquitectura, ao nível do guião, e toda uma fotografia que de facto não são usuais por terras lusas, desenhado como produto de entretenimento alcançável por todos, sem almejar a uma grande reflexão. Assim de repente, a coisa mais parecida que me lembro de ter visto foi A Bela e o Paparazzo, uma espécie de Notting Hill à portuguesa.

Ao desvalorizar o sururu que se fez em torno d' A Gaiola Dourada, não estou no entanto a desvalorizar o filme. Aquilo que em França é um produto de nível mediano, em Portugal passa por um produto de alto valor. Porquê? Bom, em primeiro lugar porque o valor do público está transmitido no comentário daquele pai, que eu citei ali em cima. Sem um público é impossível ter um cinema. De nada vale chorarmos o que não temos, quando não o temos porque não queremos. Quando se vai ao cinema para se ver a "prestação" da Soraia Chaves n' O Crime do Padre Amaro, um dos piores favores que se fez à obra de Eça, e se deixa às moscas O Barão, a única surpresa é ainda haver uns carolas a querer fazer filmes. 

Já no caso d' A Gaiola Dourada, o seu triunfo é ser precisamente aquilo que não pretende ser: um tratado de, chamemos-lhe assim, portugalidade. A Gaiola Dourada é o retrato de uma determinada geração de portugueses que fugiram à procura das oportunidades que não tinham em casa. Como tal há de todos os tipos, desde o português que abusa dos portugueses, retratado em pequena escala pelo dono do café, mas que serve de perfeita alegoria para outras situações mais... complexas, temos as gerações envergonhadas dos seus pais, mais envergonhadas do que o próprio meio em que se inserem, temos as coscuvilheiras, temos, no fundo, um pequeno Portugal que se mudou para os arredores de Paris e que guarda todas as virtudes de um Portugal pequeno em que era proíbido sonhar e ousar ser mais. Essa proibição está bem patente e vincada nas personagens principais, também elas bem alegóricas, da mulher-a-dias e do pedreiro, que quando lhes cai uma herança e uma promessa de regresso tranquilo a Portugal, o seu primeiro pensamento é "o que é que os outros vão pensar". É um filme de estereótipos e creio ser impossível qualquer luso-descendente dessa geração de 70/80 não ver ali os pais, os tios, uns primos, os colegas e tantos, tantos outros. É impossível aquela luta dos filhos para que os pais pensem em si não ser reflexo do que se passa em tantas e tantas casas onde filhos criados com acesso a cultura, com escola, com saúde, não tentem agora dar aos pais aquilo que estes se recusam em lhes oferecer. 

A Gaiola Dourada não pretende ser esta reflexão sobre como uma geração se castiga, não ousa sonhar, não ousa querer e ainda por cima divide-se entre os que tudo dão e os que tudo invejam. Nessa ausência de pretenciosismo reside o grande triunfo desta obra. Gil Vicente, pai do teatro português, tinha por lema ridendo castigat mores, a rir se castigam os costumes, e é nessa linha de representação que este filme desembarca. Sim, tem aquela cena no Douro, totalmente despropositada e escusada, mas nenhuma caricatura de portugueses ficaria completa, sem o afamado banquete na aldeia.

Friday, July 19, 2013

Doces Flagelações, Anónimo


A literatura de cariz erótico (ou pornográfico consoante o grau de moralismo) é algo que terá estado tão dormente quanto a vontade do ser humano em se excitar. Recentemente, no entanto, tornou-se um produto não só de consumo massificado, como até de um certo estatuto. Os mais desatentos poderiam pensar que tal se devia a um recém-descoberto interesse pelas obras de Miller, Nin ou outro autor consagrado. Infelizmente o motivo está abaixo, muito abaixo, da qualidade de escrita desses monstros sagrados.

Por outro lado, estas novas modas literárias tendem claramente para reinvenções da roda. Esse cariz de redescoberta tem a vantagem de fazer com que se descubram textos perdidos em prateleiras dos fundos que assim podem ver a luz do dia. Penso ser o caso deste Doces Flagelações, publicado pela 7 dias 6 noites. Penso porque denoto no livro uma certa ausência de ano de primeira publicação, ou título original, ou referências ao desconhecido autor, qualquer elemento identificativo que permita encaixar a obra temporalmente.

Face a comentários anteriores, poderá este livro ser um clássico esquecido? Dificilmente! Aliás, penso que consoante a interpretação que cada um fizer da dualidade erotismo/pornografia, este livro até poderá tender mais para a segunda do que para a primeira categoria, fugindo muito mais do virtuosismo sensual de Miller e estando muito mais próximo da narrativa libertadora de uma História de O, com este clássico a poder ser a obra que mais definirá a prateleira onde arrumar o livro em apreciação: quem olhar para o clássico de Pauline Rèage como uma obra erótica, então olhará da mesma forma para este livro.

Chamar no entanto nomes clássicos da literatura para a apreciação deste livro acaba resultar num chamar Boogie Nights para uma discussão sobre o "Fim de semana Lusitano": aquilo até se relaciona, mas só mesmo muito vagamente! No entanto, o facto de não estar escrito em troglodita faz com que uma comparação com o impulsionador da moda da literatura de "tau tau" seja infamemente injusta.

Quando digo que não está escrito para trogloditas relembro o comentário anterior que isto não é um clássico esquecido da literatura! É isso sim, uma obra que assume um propósito claro, diferente do de vender um número largo de cópias, e vai direito a ele assumindo que os leitores têm um cérebro plenamente funcional e que não são analfabetos. Exemplos disso é a forma como a adjectivação está reduzida ao essencial e a um bom uso de sinónimos de substantivos, que alternam entre os mais eruditos (púdicos mesmo) e os mais, chamemo-lhes "populares", com várias ocasiões em que a alternância se vai dando em crescendo com o estado de excitação dos intervenientes. Estas duas ferramentas de escrita acabam por evitar o uso de repetições excessivas, o que fazem deste livro uma obra muito fraca para jogos do tipo "um shot de cada vez que".

No que a personagens diz respeito, não há aqui grandes preocupações em dar profundidade às mesmas. Para quem acha que isso é um defeito, sejamos francos, face ao propósito da obra é uma virtude! (Pegando numa analogia anterior, será que o espectador de Fim de Semana Lusitano está preocupado com a profundidade das personagens? A quem respondeu que sim, curem-se!) Assim sendo, acabamos por ter praticamente uma personagem por capítulo da obra, todas residentes numa localidade da Inglaterra Industrial e a obra mais não é do que a forma como estas interagem umas com as outras para satisfazerem os seus desejos, desde os que recém descobertos a outros mais requintados com o passar dos anos, todos uma declarada afronta aos mais acesos discípulos da moral e bons costumes.

Essa afronta, o principal móbil da obra, está logo bem patente no acto de compra do livro, e o seu selo de "proíbida a venda a menores de 21 anos". Faz sentido. Mesmo à luz de uma sociedade que se quer e diz ser mais aberta, mesmo depois do porno-para-mamãs, este livro é para fazer mossa e ser lido às escondidas. De tal forma o é que me questiono mesmo se o autor anónimo será mesmo da altura do livro e não alguém bem mais contemporâneo, tal a forma como o livro consegue chocar as mais púdicas mentes e estimular as mais estimuláveis. A obra caracteriza-se por estar totalmente desligada de uma visão romântica. Aqui é só desejos e a satisfação dos mesmos, qualquer que seja o preço. Os moralismos e as reviravoltas sentimentais ficaram de fora e só perpassou o sentimento quase animalescos do prazer pelo prazer.

É pois um livro politicamente incorrectíssimo. Animais e excreções à parte, penso que muitos desejos mais desbragados encontram lá o seu capítulo, desprovidos de candura ou promessas de redenção. Não fará os leitores comprar mais dois volumes, mas é bem capaz de levar a releituras!

Thursday, June 13, 2013

Quando o Diabo reza - Mário de Carvalho


A melhor forma de começar a falar deste Quando o Diabo reza, de Mário de Carvalho, é retroceder trinta anos e falar sobre uma obra de outro Mário, esse Zambujal, e a sua Crónica dos Bons Malandros, porque no fundo esta obra é, por assim dizer, uma crónica de malandrinhos.
O paralelismo entre as obras está derramado sobre as escrita, desde os criminosos que falam como criminosos, como disse Ricardo Araújo Pereira, ao esquema rocambolesco com imprevistos de última hora. A única coisa que falta é a história dos personagens, mas ao contrário das personagens de Zambujal, aos criminosos de Carvalho falta-lhes história. Não que tenham muita. Facilmente se percebe que não há ali muita história para contar,  que não são vítimas das amarguras da vida, personagens trágicas, são apenas apologistas da malandragem, gente sem jeito para outras coisas, nunca ficando muito claro se por não quererem, se por não poderem. Ou dito de outra forma, onde Zambujal faz quase que uma apologia da malandragem, onde sentimos que podemos fazer amizade com os seus malandros, os malandros de Mário de Carvalho são gente que não queremos convidar para nossa casa desde o momento zero, ao momento final.
O centro da pequena malandragem de Carvalho é um velho. Um velho que se diz ser endinheirado apesar de nunca o sabermos e ficar sempre a impressão que a sua fortuna não será tão fortuna assim. Como velho que se diz ser endinheirado, num meio pequeno, esse velho é alvo do interesse de um grupo de meliantes e da própria família, que não se lembra dele até as contas começarem a chegar, até a vontade de comprar um carro ser grande, até... São esses malandros, nas palavras do autor, dois vadios, uma galdéria e duas irmãs, estas filhas do velho, uma que vive com ele, a outra que vive amarguradamente distante.
A narrativa decorre em Lisboa, com uma ligeira incursão aos arredores, mas pode ser num bairro qualquer onde haja uma igreja daquelas onde se paga o dízimo e que se especializam em pobres, porque os ricos vão para a outra (como a páginas tantas um dos vadios diz). Esta indefinição geográfica e a falta de história das personagens são o ponto em que as obras dos Mários, ambas narrativas da malandragem que facilmente se encontra nas esplanadas e ruelas de Lisboa, se afastam. Onde Mário Zambujal nos premiou com um romance curto, Mário de Carvalho brinda-nos com um conto longo.
Enquanto conto revela-se no entanto uma autêntica lição de como escrever. As personagens podem ser gente oca, mas não são vagas e indefinidas, a narrativa é bem estruturada e com um ritmo que encontra paralelismo na acção (de facto a fase inicial, em que se monta o palco para a farsa final, é de leitura um pouco mais lenta, mas torna-se mais fluída com o desenrolar da narrativa) e a escrita flutua com as personagens, sendo mais vadia com os vadios e galdéria com a galdéria, sem exagerar nem forçar. Ler este Quando o Diabo reza podia ser um acto de estar sentado numa esplanada a ouvi-los contar as suas aventuras e isso, essa arte de nos dar fatias da realidade que podiam ter sido vividas por nós, é uma sublime arte que merece ser apreciada.

Thursday, May 30, 2013

The Sandman - Neil Gaiman

Uma das leituras mais agradáveis que tive no ano passado foram os dez volumes de The Sandman (doravante tratado por o). No formato que é conhecido por novela gráfica, mas que ficaria melhor traduzido por romance gráfico, revelou-se uma daquelas obras que há muito mais que bonecada em livros de banda desenhada.
O facto de só agora vir falar de algo que li o ano passado, para lá de alguma preguiça que é visível no que não tem sido publicado, prende-se neste caso específico com o problema de falar das obras marcantes. O Sandman de Neil Gaiman é considerado uma das mais marcantes obras no capítulo das novelas gráficas, sentindo, nos meus círculos sociais, uma sensação de quase divino muito maior do que com outras obras.
O que senti ao ler esta obra é que dificilmente a narrativa poderia ser contada sem o suporte gráfico. Os desenhos acabam por ser muito mais do o suporte para a narrativa, tal como esta está num patamar diferente do de simples explicação para o desenho. O desenho é em si parte de como se conta a história. Há detalhes, mudanças de olhares, mudanças de roupa, subtilezas de discurso, que dificilmente se passam para o papel sem quebrar o ritmo da narrativa, sem recorrer a longas passagens narrativas. Nesta obra o mostra não contes (show don't tell) assume o seu explendor máximo porque não há a necessidade de dizer mais do que o essencial.


Ao nível da história fiquei também muito satisfeito. A narrativa está bem trabalhada, com uma mitologia própria que lhe confere credibilidade e é frequente darmos por nós a dada altura a olhar para personagens e a pensar "eu já vi esta em algum lado" e lá está ela, agora protagonista, numa escala menor um volume ou dois antes, ou vice versa. Face ao comboio de ilustradores (cada volume tem pelo menos três), esta atenção ao detalhe apenas valoriza mais a obra. E volta a introduzir uma subtileza difícil em texto corrido.

The Sandman, face ao foco que o ilumina, pode ser entrar em Neil Gaiman pela porta grande e correr o risco de não conseguir a mesma satisfação com outras obras. So que essa entrada gloriosa deixou vontade de ler mais e a pergunta com que fico é mesmo como o menino se sai na prosa!

Thursday, April 11, 2013

The Hobbit, An Unexpected Journey

Enquanto se espera pelo segundo filme da trilogia d' O Hobbit, deixo aqui aquilo que é a minha opinião sobre o primeiro filme, O Hobbit - An Unexpected Journey (Uma Viagem Inesperada, em português). Levantando um pouco o véu, algumas das queixinhas que serão aqui apresentadas irão, quase certamente, ser repetidas nos próximos filmes. O atraso, pese alguma ronha em escrever, deve-se fundamentalmente a uma recolha de argumentos esgrimidos em conversas por aí.
Nessas trocas de argumentos acabei por formular a páginas tantas uma pergunta que será o ponto de partida para esta opinião. A questão é: se alteras o sentido de uma obra aquando da sua adaptação, a adaptação mantém validade? 
Neste caso a pergunta faz (talvez estranhamente) sentido. Isto porque há duas formas de ver este filme: ou como a obra que dá origem a O Senhor dos Anéis ou como a prequela d' O Senhor dos Anéis. Podem parecer a mesma coisa, mas não o são. 
Como alguém que já leu as obras várias vezes e que conhece, mesmo que vagamente, o que levou a uma e à outra, encaro O Hobbit como "a obra que dá origem a" e não "a prequela" e isso traduz-se nas frustrações que trouxe do filme. 
Essencialmente, eu não acho que O Hobbit seja apenas um penduricalho, uma espécie de volume 0 d' O Senhor dos Anéis. Ao fim de 33% dos filmes, perto de 55% do livro estará adaptado, e aqui questiono-me se o verbo é mesmo adaptar. Poucos (ou mesmo nenhum) episódios do livro estão conforme o livro (nem sequer o jantar inicial sobrevive à fúria adaptativa). A vontade de adaptar é extensível aos anexos d' O Senhor dos Anéis. Quem pensa que os anexos d' O Senhor dos Anéis serviram apenas para aumentar volume desengane-se! Serviram antes de mais para sugerir coisas giras que podem ser lá enfiadas para o meio sem qualquer respeito pela narrativa.
Numa conversa com um amigo, ele queixava-se que "faltava aquele efeito surpresa de ver a Terra Média à nossa frente". Apesar de perceber o que ele quer dizer, aquilo que senti que faltava foi o olhar de um apreciador da obra. Esse olhar está bem patente n' O Senhor dos Anéis e serve de ponto de partida para se falar um pouco da linha que separa a fidelidade à obra da adaptação
Enquanto clássico da literatura infantil, O Hobbit apresenta uma estrutura toda ela muito dinâmica, com cada capítulo a corresponder grosso modo a uma aventura, toda ela narrada de uma forma linear e centrada nesse hobbit que parte com um grupo de anões à conquista de um tesouro numa montanha distante. Seria fácil imaginar que a transposição para o cinema seria muito mais fácil do que a d' O Senhor dos Anéis, mais do que pelas diferentes narrativas, mas mais por todo o peso que as emoções têm no segundo, as descrições mais exaustivas de paisagens e a própria complexidade das interacções das personagens entre elas e o mundo que as rodeia. Claramente, quando se começou a falar da expansão de uma obra apresentada num livro (e um volume) para três filmes, adivinhava-se já que se estava a fugir ao que seria normal numa adaptação (especialmente comparando com o facto de os seis livros - em três volumes - d' O Senhor dos Anéis terem dado origem apenas a três filmes). O que ocorre de facto é que se reescreve O Hobbit como uma obra subordinada a O Senhor dos Anéis (quando na realidade sucede o inverso). Esquecer qual das obras é que se encontra subornidada à outra dá origem à necessidade das contextualizações que esta adaptação a si chama. Isto se quisermos assumir as liberdades criativas tomadas como contextualizações e não deturpações, pois tal apenas é possivel se se entender O Hobbit como aquilo que ele não é: uma espécie, repito-o, de capítulo 0 d' O Senhor dos Anéis. O foco do livro não é como Sauron sobreviveu à Última Aliança de Elfos e Homens e da sua re-ascensão. O foco do livro não é de como Bilbo encontra o anel. O foco do livro não é de como os anões andam a fugir de um Azog (ou sua descendência) que morreu anos antes. Quem apenas vir o filme pensa que O Hobbit existe para que O Senhor dos Anéis possa existir. Repito-o, isso é uma premissa falsa. O Bilbo não decicidiu ir atrás dos anões devido ao apelo do seu lado "Took", ele foi praticamente empurrado por Gandalf e se ele corre porta fora não é por querer aventura é por ter medo das consequências de não honrar o contrato com os anões ao não chegar a horas ao ponto de encontro. Há uma grande importância dada ao "nome das espadas" e esquecemo-nos que a Sting ganhou o seu nome nas Misty Mountains, na fuga do Bilbo de Goblin Town. Há uma necessidade de dobrar a história para o Bilbo ganhar respeitabilidade entre os anões, e esquecemo-nos de um dos momentos em que tal acontece (e em que o anel toma algum protagonismo para tal acontecer). O sentido da história ficou dobrado no momento em que se achou pertinente mostrar o Radagast (e escuso-me de comentar trenós puxados por coelhos) e de como Mirkwood se tornou Mirkwood, de como houve necessidade de mostrar um Conselho Branco (outra vez adaptado) e de como provavelmente se sente a necessidade de vir a mostrar o assalto a Dol Guldur desviando-nos da essência do livro: a busca dos anões pelo seu tesouro e reino perdidos. Arrisco dizer, pelo que já foi revelado, que o Gandalf do início d'A Irmandade do Anel é um banana se ainda não percebeu quem é o Necromante!...
Portanto... O filme enquanto filme mais do que aguentar-se, é uma espectacular obra de aventura, com movimento, batalhas bem coreografadas e que não puxa muito pela cabeça. A fotografia é impressionante e a banda sonora mais uma vez assume o papel de personagem chave. No entanto, chamemos-lhe "Uma viagem inesperada", porque chamar-lhe O Hobbit leva a confusões com um livro cuja narrativa e finalidade diferem largamente daquilo que o autor do filme quis fazer. É um bom filme de aventuras, mas falha a toda a linha enquanto adaptação do livro.

Friday, February 8, 2013

Molecules at an Exhibition: Portraits of Intriguing Materials in Everyday Life - John Emsley


 Molecules at an Exhibition é a colectânea de uma série de quadros sobre moléculas, publicados pelo autor no The Independent, na sua rubrica Molecule of the Month. Neste livro as moléculas são apresentadas divididas em galerias, consoante os seus usos e aplicações mais correntes.

 O conhecimento de química dos leitores vai influenciar bastante a forma como se aprecia o livro. Para o leigo é um livro interessante, escrito numa linguagem acessível e que explica fenómenos banais de uma forma bastante perceptível e que ajuda a população em geral a perceber porque é que novos materiais, de uso corrente, consistem grandes desafios da ciência e da técnica. Para alguém com alguns conhecimentos de química avançada, o livro poderá, sob os holofotes da segunda década do século XXI, parecer já desatualizado. De facto, o livro colecciona textos escritos na sua maioria na década de 1990. Muitas das novidades já passaram e muitos dos desafios futuros ou já se resolveram ou foram colocados na gaveta das "boas intenções para mais tarde". Também o tom do livro pode parecer um pouco paternalista, não se inibindo o autor, nem sendo a isso obrigado, diga-se, de deixar o seu cunho opinativo sobre a natureza dos compostos em questão.

 É um livro que se recomenda a quem procura um pouco mais de conhecimento sobre o mundo que o rodeia, mas deve ser lido tendo presente que o texto não está actualizado e que de cada vez que se fala no "futuro", o futuro a que o livro se refere é hoje!