Monday, December 8, 2014

O Leopardo - Giuseppe Tomasi di Lampedusa


A narração do declínio de uma dinastia siciliana, na pessoa do seu último patriarca, salva-se acima de tudo pela articulação entre a famosa frase de Tancredi (Se vogliamo che tutto rimanga com'è bisogna che tutto cambi. - Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.) e de como cruamente o autor nos vai demonstrando tudo a arrumar-se em torno desta máxima numa Itália em estática mudança.

Na generalidade a leitura foi lenta e sofrida, em grande parte por achar que o foco em alguns aspectos se devia a factores que me transcendiam. Como exemplo surgem as descrições de salas e edifícios, que compõem uma parte substancial do livro, e as quais se percebe, pela adjectivação, pelo ênfase que se nelas se coloca e pelo uso velado da personificação, como os objectos são quase tão importantes como as gentes. Ora este aspecto leva-me a crer que esta é uma obra que pede forçosamente algum conhecimento do que foi a História italiana na última metade do século XIX para melhor se perceber o papel de cada personagem, objecto e lugar. 

À semelhança de muitos livros que leio traduzidos, neste fica aquela sensação de que a tradução terá estragado algo. Não quero com isto questionar o trabalho do tradutor, mas é uma tarefa ingrata e que pode estragar a experiência ao leitor, mesmo quando feita com amor e dedicação. Um conhecimento mesmo que elementar do italiano diz-nos que esta lingua tem um ritmo e uma sonoridade muito própria. Acontece que o italiano não é um italiano, mas muitos italianos. O que não será de certeza é o dialecto da Sicília, nomeadamente na viragem do século. Foi possível de ver, pela pontuação e algumas palavras usadas, qua havia algo sobre a respiração da obra que a tradução não conseguia passar e esse factor terá contribuído para uma menor apreciação da obra.

Pelo registo histórico e pela forma como representa a imutabilidade da natureza humana face às mudanças do poder em seu redor, a obra acaba por se destacar, no entanto o estilo não me apelou e a leitura que me proporcionou foi um tanto ou quanto sofrida. Penso no entanto que assim que tiver adquirido mais contexto para o texto, sou capaz de voltar a esta obra. Como disse, não gostei mas também não desgostei. Foi um pouco como estar numa sala onde todos falam de um tema que não conheço.

Monday, April 28, 2014

Wolfhound Century - Peter Higgins

O proverbial burro alimentado a pão de ló. Chegado ao final deste livro, tendo parado um pouco para resumir e repensar o que li, é assim que me sinto. De tão habituado que estou a quantidades copiosas de palha, quando me dão um cheirinho de algo sobejamente mais docinho, sinto que nada me chega.

Penso que a origem desse sentimento é uma questão de expectativas. Anunciado como algo de extraordiário, criou expectativas que no imediato não satisfaz. Quero mais. Não necessariamente melhor, mas mais. A questão que se coloca é, onde está então a grandiosidade?

A minha primeira resposta, com um distanciamento mais frio, é na pequenez. Pode um livro ser grande e pequeno? Pode. Em tempos de adjectivação com força e forçada, de minuciosas descrições exaustivas, Wolfhound Century consegue ser bastante sóbrio na utilização dessas ferramentas. Esse é o principal aspecto da grandiosidade, a clareza e a concisão, tão em falta nestes dias.

No que diz respeito à escrita não há muito a apontar. Curta, seca, tremendamente eficaz a criar uma atmosfera cinzenta, capítulos curtos mas, feitas as contas, com o essencial. Competente será um termo que encaixa muito bem.

Quanto ao estilo, é mais um daqueles livros que passeiam por estilos sem se amarrarem a nada. A conversa de anjos e obscuros objectos centenários remete para uma dimensão de fantástico a que o detective Lom e a sua busca pelo subversivo Joseph Kantor dão um toque policial. Só que as coisas não ficam por aí. Quando se descobre uma conspiração maior, somos arrastados por sequências dignas de bons contos de suspense e nem uns laivos de romance ecologista são deixados de fora de um livro que com o seu imaginário propositadamente soviético podia não destoaria em prateleiras ao lado de um Tom Clancy. Mais um livro que remete a discussão sobre géneros literários aos bons livros e aos maus.

Tudo é servido com a consciência que este livro é apenas o primeiro de uma trilogia e portanto uma introdução. É aqui que está a frustração. De tão habituado a um festim de letras e papel, Wolfhound Century é poupadinho quanto baste, para mesmo assim pedir uma pausa e reflexão antes de se embarcar no segundo volume.

Thursday, April 24, 2014

Dia do Livro (Atrasado)


Ontem, dia 23 de Abril, foi o dia do Livro e do Direito de Cópia. Não é que tenha deixado passar a efeméride, mas andei-me a debater sobre o rumo que lhe devia dar. A inspiração em que me baseei foi um artigo num blog da página do Guardian, intitulado Five perfect books for men who never read. Segundo este artigo, que se refere, penso, ao universo britânico, cerca de um terço dos homens não leu um livro depois de sair do sistema de ensino. Assim sendo, o autor propõe uma lista de cinco livros para que estes homens recuperem hábitos de leitura.

O desafio a que me propus foi o de executar uma lista semelhante em português. Os critérios que usei para me balizar foram o de já ter lido o livro, de ser de um autor português (o meu conhecimento de outros lusófonos é muito limitado), não ser de poesia, não repetir autores e ser de leitura fácil, sem com isso querer dizer simplória. Ao contrário do autor do blog, deixei de fora exercícios estilísticos como o Finnegan's Wake, o que quer dizer que Lobo Antunes não figura aqui.

Segue abaixo a lista com um pequeno texto explicativo.

-Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente
Para quem anda afastado da leitura, nada como voltar aos bancos da escola, só que agora sem "ter" de ler e antes por "querer" ler. Esta é das obras obrigatórias a (re)ler. Sendo uma peça de teatro está escrito essencialmente em discurso directo, o que simplifica a leitura. Apesar dos quatro séculos dificilmente perdeu o seu tom humorístico.
-O Primo Basílio, de Eça de Queiroz
Sem o estigma d' Os Maias e sem a conotação de crítica d' O Crime do Padre Amaro, é uma obra cujo realismo das relações de Luisa e Basílio chega a roçar o, para a época, erótico. A escrita não tem o peso de nenhuma de outras obras mais conhecidas do autor, e a leitura é fluída q.b.

-Os Bichos, de Miguel Torga
Dificilmente a escrita fica mais rude, mais simples e mais cheia do que nos contos de Torga. Não há português que não perceba, seja doutor ou pedreiro, nem que não reconheça as dores dos bichos. A estrutura de contos ajuda também.
-Crónica dos Bons Malandros, por Mário Zambujal
Quem não gosta de boa malandragem? Tem pequenos criminosos, grandes sonhos e um amor eterno. Tudo servido em doses generosas de linguagem de rua, sem cair no uso do descontrolado do calão e sem resvalar para a pieguice. 

-O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa
Um exercício de prosa curioso. Poderá não saltar imediatamente à vista a contradição do título, mas se lhe chamássemos O Banqueiro Comunista, então despertaria interesse. É um livro pesado que pesa pouco. O foco não será tanto na contradição do título, que o visado de resto se esforça por mostrar que não existe, mas em tempo de crises e soluções imediatas, vale mais do que muitos tratados sobre o que é o que parece ser.

Friday, March 21, 2014

Liberdade ou Morte - Nikos Kazantzakis


Houve quem certa vez me tivesse revelado que gostava de ler as minhas opiniões por as achar especialmente idiossincráticas. Confesso que interpretei o comentário de uma forma mista. Tal comentário, não constituindo um elogio, também não era propriamente um insulto, e despoletou em mim uma análise mais cuidada do como andava a opinar. O que me apercebi é que havia uma grande tendência de moldar o que lia ao mundo em meu redor. Menos mal, pensei, mas até que ponto é que não estaria a deturpar a leitura? Como consequência, os comentários por aqui tornaram-se mais espaçados e menos idiossincráticos.

Teria sido muito fácil dobrar toda a obra Liberdade ou Morte a uma leitura à luz dos dias de hoje. A luta dos cretenses contra o ocupante Turco é por demais comparável à situação grega, desde a violência exercida pelo ocupante, o nojo que este sente para com o ocupado, o pavor à terra ocupada, o olhar para o lado das grandes potências, todas elas mais preocupadas com a grande política do que com o sofrimento de um povo que prefere ir para as montanhas e morrer... Como disse, seria demasiado fácil!

Essa facilidade é-nos transmitida pela escrita apaixonada de Kazantzakis, cretense que nos transmite uma Creta que é mais do que o simples palco para a sua narrativa. Creta é, quando acabamos de ler a última página, ela própria uma personagem. Lida que está esta obra, é claro que para aqueles lutadores pela liberdade a terra onde nasceram é muito mais do que isso. É uma mãe, como alguns lhe chamam, tem uma pureza de sangue, como nos relembram os mais velhos, tem uma respiração própria, como amaldiçoam as autoridades turcas, e tem humores. Maus humores, quando o vento sopra de Sul, prenúncio de tragédias na obra de Kazantzakis. Um vento quente, que trás areias de desertos longíquos e que não deixa dormir homens nem mulheres, perturbando-lhes os pensamentos.

Terra de revoltas e capitães assombrados pelos capitães de outrora, o mais impressionante exemplar desta espécie é o capitão Micaelis (que de resto empresta nome e título ao texto original), proprietário de um estabelecimento comercial, nos intervalos entre revoluções, e terror dos turcos, a tempo inteiro. Filho do velho capitão Sifakas, homem que deu um batalhão de mártires à causa da independência, vive na capital, Cândia, onde tem a loja já mencionada e a casa para onde se retira todas as noites e que partilha com a mulher, o filho mais novo e a filha, que se esconde do pai por ordem deste, desde que entrou na puberdade. O Capitão Micaelis leva a mais austera das vidas que se possa imaginar. Homem pouco dado a excessos, reserva na sua agenda apenas duas semana por ano, quando subjuga sempre o mesmo grupo de foliões a partilhar com ele de comida, bebida e música na sua cave. Mulheres nem vê-las, semeadoras de discussões que são.

A Creta do Capitão Micaelis não é uma Creta qualquer. Apanhada durante a ocupação otomana, sem que a Europa humanista ou a Rússia ortodoxa oiçam e atendam aos seus apelos de ajuda. Nem da Grécia depauperada de meios militares, fortuna ou influência política virá o auxílio para libertar a ilhar. Assim, em Creta sofre-se e luta-se como se pode, dando à ilha os verdadeiros cristãos que a libertarão, um dia, e celebra-se quando a mulher de um dos altos ocupantes de converte. Pouco importa que ela questione a beligerância cretense à luz do Envangelho de Paz que lhe serve de motivação religiosa. Creta é uma coisa, os cristãos outra.

Que almas se digladiam pois na Semana Santa em que se inicia a acção? Nuri Bei e o Capitão Micaelis, irmãos de sangue e homens que se odeiam profundamente. Homens condenados a defrontarem-se, pressionados pelos seus irmãos de religião, que prometeram procurar a vingança nos outros. Só que Creta é uma panela de pressão e o capitão Micaelis fogo demasiado forte. Com ele por perto, todas as outras personagens mudam de personalidade. Com ele no meio da acção a pressão aumenta até que é necessário que a válvula salte e Creta experimenta outra revolução. Fogem homens para as montanhas, morrem capitães, fazem-se capitães e os políticos entram em cena para tentar a paz e os onzeneiros entram em cena para aumentarem os seus lucros. Como eu dizia no início, demasiado fácil de encontrar paralelismos quase duzentos anos passados...

A escrita de Kazantzakis, ele próprio um filho da ilha, é como a figura do capitão Micaelis: austera, sem palavras desnecessárias, rude no falar e precisa no que deixa por dizer, sofrida e atormentada pelo fantasma de fazer justiça aos seus antepassados, transmitindo na perfeição essa dor que os filhos desamparados de uma civilização subjugada sentem. Através da pena de Kazantzakis somos levados a sentir essa dor, mesmo que nas suas obras ele renegue e vote ao opróbrio todos quantos os que preferem segurar a pena à espingarda, os que confiam nos livros sobre a ignorância, os que não fazem do sangue nas veias o veículo racional por detrás de cada uma das suas acções. Pela pena de Kazantzakis, a luta de Creta é muito mais do que a luta de Creta. Aqueles homens, a dada altura, não lutam pela ilha. 

É o velho Sifakas, no seu leito de morte,  que nos leva a descobrir por que se luta em Creta. É aquele cadáver que nos mostra os capitães de terra, mar e artes a relatarem as suas vidas de aventura onde lutaram não pela terra, não por religião, mas sim e apenas para poderem ser homens. Homens do sue destino, não ovelhas presas entre o cajado do pastor, as dentadas do cão e as mordeduras dos lobos. "Liberdade ou Morte", o lema debruado em tons escarlates sob o fundo negro da bandeira artesanal do capitão Micaelis, as únicas palavras que o velho Sifakas alguma vez aprendeu a escrever e apenas para poder escrever pelo seu próprio punho o seu testamento. Nas ombreiras das portas, nas esquinas da sua aldeia, na fachada da igreja, por aí foi o velho Sifakas e a sua lata de tinta, "Liberdade ou Morte", um testamento e uma maldição.

Liberdade ou Morte, o grito de Creta, o grito dos Homens, o lema inacabado com que o livro fecha, gravado que está indelevelmente na mente do autor. Seria fácil, nos tempos carneiros que vivemos de tecer considerações idiossincráticas sobre esta obra. Seria demasiado fácil. Tão fácil que não o vou fazer.

Wednesday, February 26, 2014

Cordeiro, o Envangelho segundo Biff, o amigo de infância de Jesus Cristo - Cristopher Moore


Quando um dia cheguei a casa este livro estava lá à minha espera. Aparentemente tinha sido uma pechincha e parecia ser um livro de leitura ligeira, pese o número de páginas, o que fez com que alguém à procura de se (re)iniciar no ritual da leitura o tivesse adquirido.

De facto, a leitura que aqui se encontra é ligeira. O livro assume-se como um exercício sobre o que poderia ter sido a vida de Jesus Cristo nos anos que antecedem a sua vida pública, tudo visto pelos olhos daquele que seria o seu melhor amigo de infância. Uma máxima de quem quer vender livros é que tem de incluir pelo menos uma de duas categorias: sexo ou religião. Neste caso inclui os dois, mas não com a fórmula de aproveitamento que originou a máxima descrita, sem a aproveitar para o escândalo, e entregando um documento que, pese uma escrita claramente para uma facção sub-16, pode bem até ser lido na catequese.

Há laivos de religião, ou não abordasse o livro a figura da principal religião monoteísta da actualidade, e há laivos de sexo, ou não se focasse no desenvolvimento da personagem, com particular incidência sobre a sua adolescência e primórdios da fase adulta. A forma como os aborda é assumidamente hipotética, com laivos de ridículo, fugindo à satirização e colocando uma seriedade cómica nas incidências que fazem o leitor esboçar sorrisos e pensar sobre o que é dito, recorrendo para tal a uma duo de personagens que juntas parecem uma dupla cómica, mas que se assumem como a parte séria e parte cómica.

Quem são então estes dois personagens? Biff e Jesua (sim, Jesua, já lá vamos, mais à frente), chegados à idade em que escolhem uma profissão (cerca de 10 anos) decidem embarcar numa viagem pelo mundo à procura dos três magos do oriente, que haviam visitado Jesua (já lá vamos...) aquando do seu nascimento. A opinião é que estes magos possuem conhecimento que ajudarão Jesua a assumir-se como o Messias do povo de Israel. Até aqui, tirando a viagem em redor do mundo e o Biff, nada de novo.

As incidências da viagem acabam por ser um pouco uma metáfora do que seriam os próximos séculos. Por um lado Jesua vai aprofundando os seus conhecimentos filosóficos, aprendendo o que pode do Confucionismo, do Hinduísmo e do Budismo, enquanto Biff vai-se tornando uma espécie de super-ninja, destinado a proteger o seu amigo e a ajudá-lo com uns pequenos truques. Religião, ilusionismo e artes marciais, que mistura invulgar e, à partida inesperada. Pelo meio há umas confusões que envolvem anjos e que pretendem transmitir alguma lógica à narrativa.

Abordemos então os méritos. O livro foge aos habituais chavões das teorias da conspiração, ou da figura de Cristo como apenas mais um homem, apesar de esta segunda ser assumida ao longo da narrativa, e fonte de um intenso debate interno na figura de Jesua. Neste aspecto, as dúvidas de um homem condenado à nascença a ser o salvador do seu povo, o conflito entre o Homem e o Filho de Deus, estão muito bem colocadas, havendo uma aura quase pedagógica na escrita sobre a aceitação que alguns deveres transcendem as nossas vontades. A este confronto moral, há regra geral o mundo material, na figura de Biff, a figura em que a tentação vence sempre. Virtude e perdição lado a lado, de forma acessível e nada moralista.

Outro dos méritos passa claramente por olhar para Oriente. É do cânone Bíblico que vieram os magos do oriente para o adorar. O que não se aborda muito é quem eram e donde vinham esses magos. Christopher Moore pegou nas três principais filosofias/crenças do Oriente que sobreviveram até hoje desde o pré-cristianismo e atribui uma a cada mago. Se correlacionando com a informação Bíblica isto poderia indiciar uma alegoria do reconhecimento de Cristo pelas outras grandes escolas que sobreviveram, convém refrearmo-nos e relembrar que esta é assumidamente uma obra de ficção. Acontece que, de uma forma bastante positivista, lança o debate sobre as bases filosóficas da mensagem de Cristo, para todos os efeitos um Judeu que prega uma mensagem tão dispar do Judaísmo mais ortodoxo do seu tempo. Aliás, passem as imprecisões históricas e as situações cómicas, e é fácil acreditar que a coisa até se podia ter passado assim. Se refiro no início do parágrafo que a virtude é olhar para o Oriente, tal deve-se ao facto de o mais frequente ser comparar a génese do Cristianismo com o paganismo romano a Ocidente da Judeia. Nesse sentido, este livro de Christopher Moore lança, de uma forma suave e despretenciosa esse debate num público jovem.

Acontece que a tentativa de chegar a um público jovem leva a que o texto sofra com isso. Acho que há uma imbecilização transversal do discurso, uma escrita a dado momento demasiado relaxada e o final é todo ele precipitado. Para lá disso, não ajuda ler a edição portuguesa. Este foi daqueles livros que me deixou com imensa curiosidade de ler a versão original, porque me dá a sensação que o trabalho de tradução não foi o mais cuidado. Claro que há pormenores de tradução que não se podem querer passar como estão e pedem algumas cambalhotas. De destacar o nome do personagem secundário. Assumo que o autor, na sua versão original usa o hebraico Joshua, que em "americano" se pode encurtar para Josh, para se referir a Jesus. A versão portuguesa usar Jesua para substituir Jesus é simplesmente idiota. Acontece que esta idiotice, uma vez que o livro se foca nessa personagem, e repetida ad nauseum. Outras situações, de menor severidade, vão ocorrendo, que obrigam a que o leitor esteja familiarizado com alguns coloquialismos em inglês e consiga fazer a retro-tradução. Não é fácil, portanto.

Genericamente, é um livro que recomendo vivamente, pesem as dificuldades de leitura. Estas, para lá das idiotices da tradução foram mais agravadas pela linguagem demasiadamente focada para um público jovem. Apesar de questionar se esta é a forma mais apropriada, há exemplos de linguagem bem mais elaborada que está consideravelmente pior escrita. Tirei no entanto imenso prazer da exploração que o autor faz da vida de Cristo entre a infância e a vida pública e recomendo a todos que, se não tiverem outro motivo, leiam o livro por esse. Com uma mente aberta e lembrando-se que é um obra de ficção e não aspira a nada mais.

PS - De caminho, ler as palavras do autor sobre a génese da obra.

Friday, February 21, 2014

A Violação das Mulas - Maria O.


De uma desconhecida pena, que muito tem escrito mas de quem nada assumidamente se conhece, chega-nos este conto passado numa desconhecida vila portuguesa, com desconhecidos presidentes de câmara a quem lhes é reconhecida pouca seriedade, vereadores reconhecidamente ao serviço de si mesmos e toda uma panóplia de personagens a quem dificilmente se reconhece a possibilidade de ser um qualquer vizinho de quem lê estas linhas. Com tanto reconhecimento desconhecido, todo o conto é uma experiência estranha.

A aura, um pouco surrealista, que rodeia esta obra começa pelos nomes nada ortodoxos das personages. Denota-se uma vontade de anonimato camuflado por nomes prosaicos, como que a insinuar que aqueles personagens mais não são do que alegorias do professor frustrado, da empresária frustrada, do artista frustrado, do adoptado que quer conhecer os seus pais, do voyeur, dos políticos... Uma alegoria, em forma de vila, do ser português. Acontece que não há nada de alegórico em A Violação das Mulas. As personagens são apenas representações de si mesmas, superficiais como se quer das personagens de contos, deixando no leitor a vontade de querer saber mais sobre elas, a vontade de virar a página e descobrir que mais a mão que escreveu aquelas linhas tem para nos contar. O que se pode dizer, ultrapassado que esteja o choque das Possidónias, dos Zibetas e das Zibelinas, é que esses nomes que visam banalizar as personagens conferem-lhes a aura de estrelas e funcionam a favor do conto.

Face às personagens políticas, que cada vilarejo e lugar de Portugal tem, seria fácil tentar encontrar neste A Violação das Mulas uma tentativa encapotada de crítica social. Acontece que as personagens são tão hiperbolicamente descritas que qualquer tentativa de ridendo castigat mores se perde nesse exagero. Se alguma coisa, os estereótipos funcionam como os lugares-comuns que se trocam na mesa da esplanada sobre os mesmos e cumprem a função de interlúdio humorístico, uma espécie de limpa-palato para a obra maior contida no conto, se tal é possível. De que outra forma se pode interpretar o presidente apreciador de bolas de Berlim, da secretária apaixonada mais pelas bolas do que pelo poder, do vereador demasiado grande para a pequena corrupçãozinha da terrinha e demasiado pequeno para passar as suas fronteiras? Aliás, de que forma se podem estas tropelias comparar com as orgias do Quim, da Possidónia, da Zibelina e do amoroso homossexual David?

Quando procurava outras opiniões sobre a obra, uma crítica frequente era o uso desproporcionado do calão, que era forçado, que era abusivo. Não é nada disso! O calão está tão presente no nosso dia-a-dia como na obra. Não há um deturpar da situação para colocar o calão, a proporção é aquela, na medida certa, está bem usado e, acredite-se ou não, acrescenta uma grandeza quase Bocagiana ao conto. Se o uso de calão fosse o critério único para se avaliar uma obra, estaríamos perante um clássico esquecido da literatura portuguesa. Não é nenhum dos casos. Há que ponderar outros aspectos.

O primeiro aspecto que me apraz abordar é a fluidez da escrita, e quanto da mente que pensa a narrativa a mão coloca no papel. É notório que esta Violação das Mulas foi escrita sem a premeditação da escultura homónima no conto, de tal forma as mudanças de humor de Maria O. se fazem sentir no texto. Atentemos na minha anterior menção à crítica social. Se mencionei tal facto deve-se ao facto de a dada altura o texto ter esse tom, pelo uso de expressões, pelo destaque dado a certos aspectos, pela forma como se comportam as personagens. Só que depois entra em cena o romance impossível entre duas classes sociais distintas (e oh! como elas existem nesse Portugal que não é Lisboa), um romance de tal forma intenso que acaba por se tornar um quase pornográfico desfilar de situações, vistas pelo telescópio de um vizinho, antes de tudo acabar em drama familiar com laivos de romance policial.

Seria fácil utilizar o chavão de que este conto é um guião Tarantinesco, mas isso implicaria que as flutuações de género que desfilam no curto número de páginas do conto, haviam sido preparadas e pensadas anteriormente. A grande falha do conto reside na incapacidade de revelar essa premeditação. O conto entretém, está bem escrito, mas antiteticamente falha quando quer colar a crueza exagerada de umas situações com as cambalhotas de um enredo divertido. Está tudo dentro da caixinha do que é a ficção que diverte sem estupidificar. As características estão la todas, so faltou um bocado de cola!