Wednesday, February 26, 2014

Cordeiro, o Envangelho segundo Biff, o amigo de infância de Jesus Cristo - Cristopher Moore


Quando um dia cheguei a casa este livro estava lá à minha espera. Aparentemente tinha sido uma pechincha e parecia ser um livro de leitura ligeira, pese o número de páginas, o que fez com que alguém à procura de se (re)iniciar no ritual da leitura o tivesse adquirido.

De facto, a leitura que aqui se encontra é ligeira. O livro assume-se como um exercício sobre o que poderia ter sido a vida de Jesus Cristo nos anos que antecedem a sua vida pública, tudo visto pelos olhos daquele que seria o seu melhor amigo de infância. Uma máxima de quem quer vender livros é que tem de incluir pelo menos uma de duas categorias: sexo ou religião. Neste caso inclui os dois, mas não com a fórmula de aproveitamento que originou a máxima descrita, sem a aproveitar para o escândalo, e entregando um documento que, pese uma escrita claramente para uma facção sub-16, pode bem até ser lido na catequese.

Há laivos de religião, ou não abordasse o livro a figura da principal religião monoteísta da actualidade, e há laivos de sexo, ou não se focasse no desenvolvimento da personagem, com particular incidência sobre a sua adolescência e primórdios da fase adulta. A forma como os aborda é assumidamente hipotética, com laivos de ridículo, fugindo à satirização e colocando uma seriedade cómica nas incidências que fazem o leitor esboçar sorrisos e pensar sobre o que é dito, recorrendo para tal a uma duo de personagens que juntas parecem uma dupla cómica, mas que se assumem como a parte séria e parte cómica.

Quem são então estes dois personagens? Biff e Jesua (sim, Jesua, já lá vamos, mais à frente), chegados à idade em que escolhem uma profissão (cerca de 10 anos) decidem embarcar numa viagem pelo mundo à procura dos três magos do oriente, que haviam visitado Jesua (já lá vamos...) aquando do seu nascimento. A opinião é que estes magos possuem conhecimento que ajudarão Jesua a assumir-se como o Messias do povo de Israel. Até aqui, tirando a viagem em redor do mundo e o Biff, nada de novo.

As incidências da viagem acabam por ser um pouco uma metáfora do que seriam os próximos séculos. Por um lado Jesua vai aprofundando os seus conhecimentos filosóficos, aprendendo o que pode do Confucionismo, do Hinduísmo e do Budismo, enquanto Biff vai-se tornando uma espécie de super-ninja, destinado a proteger o seu amigo e a ajudá-lo com uns pequenos truques. Religião, ilusionismo e artes marciais, que mistura invulgar e, à partida inesperada. Pelo meio há umas confusões que envolvem anjos e que pretendem transmitir alguma lógica à narrativa.

Abordemos então os méritos. O livro foge aos habituais chavões das teorias da conspiração, ou da figura de Cristo como apenas mais um homem, apesar de esta segunda ser assumida ao longo da narrativa, e fonte de um intenso debate interno na figura de Jesua. Neste aspecto, as dúvidas de um homem condenado à nascença a ser o salvador do seu povo, o conflito entre o Homem e o Filho de Deus, estão muito bem colocadas, havendo uma aura quase pedagógica na escrita sobre a aceitação que alguns deveres transcendem as nossas vontades. A este confronto moral, há regra geral o mundo material, na figura de Biff, a figura em que a tentação vence sempre. Virtude e perdição lado a lado, de forma acessível e nada moralista.

Outro dos méritos passa claramente por olhar para Oriente. É do cânone Bíblico que vieram os magos do oriente para o adorar. O que não se aborda muito é quem eram e donde vinham esses magos. Christopher Moore pegou nas três principais filosofias/crenças do Oriente que sobreviveram até hoje desde o pré-cristianismo e atribui uma a cada mago. Se correlacionando com a informação Bíblica isto poderia indiciar uma alegoria do reconhecimento de Cristo pelas outras grandes escolas que sobreviveram, convém refrearmo-nos e relembrar que esta é assumidamente uma obra de ficção. Acontece que, de uma forma bastante positivista, lança o debate sobre as bases filosóficas da mensagem de Cristo, para todos os efeitos um Judeu que prega uma mensagem tão dispar do Judaísmo mais ortodoxo do seu tempo. Aliás, passem as imprecisões históricas e as situações cómicas, e é fácil acreditar que a coisa até se podia ter passado assim. Se refiro no início do parágrafo que a virtude é olhar para o Oriente, tal deve-se ao facto de o mais frequente ser comparar a génese do Cristianismo com o paganismo romano a Ocidente da Judeia. Nesse sentido, este livro de Christopher Moore lança, de uma forma suave e despretenciosa esse debate num público jovem.

Acontece que a tentativa de chegar a um público jovem leva a que o texto sofra com isso. Acho que há uma imbecilização transversal do discurso, uma escrita a dado momento demasiado relaxada e o final é todo ele precipitado. Para lá disso, não ajuda ler a edição portuguesa. Este foi daqueles livros que me deixou com imensa curiosidade de ler a versão original, porque me dá a sensação que o trabalho de tradução não foi o mais cuidado. Claro que há pormenores de tradução que não se podem querer passar como estão e pedem algumas cambalhotas. De destacar o nome do personagem secundário. Assumo que o autor, na sua versão original usa o hebraico Joshua, que em "americano" se pode encurtar para Josh, para se referir a Jesus. A versão portuguesa usar Jesua para substituir Jesus é simplesmente idiota. Acontece que esta idiotice, uma vez que o livro se foca nessa personagem, e repetida ad nauseum. Outras situações, de menor severidade, vão ocorrendo, que obrigam a que o leitor esteja familiarizado com alguns coloquialismos em inglês e consiga fazer a retro-tradução. Não é fácil, portanto.

Genericamente, é um livro que recomendo vivamente, pesem as dificuldades de leitura. Estas, para lá das idiotices da tradução foram mais agravadas pela linguagem demasiadamente focada para um público jovem. Apesar de questionar se esta é a forma mais apropriada, há exemplos de linguagem bem mais elaborada que está consideravelmente pior escrita. Tirei no entanto imenso prazer da exploração que o autor faz da vida de Cristo entre a infância e a vida pública e recomendo a todos que, se não tiverem outro motivo, leiam o livro por esse. Com uma mente aberta e lembrando-se que é um obra de ficção e não aspira a nada mais.

PS - De caminho, ler as palavras do autor sobre a génese da obra.

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