Friday, March 21, 2014

Liberdade ou Morte - Nikos Kazantzakis


Houve quem certa vez me tivesse revelado que gostava de ler as minhas opiniões por as achar especialmente idiossincráticas. Confesso que interpretei o comentário de uma forma mista. Tal comentário, não constituindo um elogio, também não era propriamente um insulto, e despoletou em mim uma análise mais cuidada do como andava a opinar. O que me apercebi é que havia uma grande tendência de moldar o que lia ao mundo em meu redor. Menos mal, pensei, mas até que ponto é que não estaria a deturpar a leitura? Como consequência, os comentários por aqui tornaram-se mais espaçados e menos idiossincráticos.

Teria sido muito fácil dobrar toda a obra Liberdade ou Morte a uma leitura à luz dos dias de hoje. A luta dos cretenses contra o ocupante Turco é por demais comparável à situação grega, desde a violência exercida pelo ocupante, o nojo que este sente para com o ocupado, o pavor à terra ocupada, o olhar para o lado das grandes potências, todas elas mais preocupadas com a grande política do que com o sofrimento de um povo que prefere ir para as montanhas e morrer... Como disse, seria demasiado fácil!

Essa facilidade é-nos transmitida pela escrita apaixonada de Kazantzakis, cretense que nos transmite uma Creta que é mais do que o simples palco para a sua narrativa. Creta é, quando acabamos de ler a última página, ela própria uma personagem. Lida que está esta obra, é claro que para aqueles lutadores pela liberdade a terra onde nasceram é muito mais do que isso. É uma mãe, como alguns lhe chamam, tem uma pureza de sangue, como nos relembram os mais velhos, tem uma respiração própria, como amaldiçoam as autoridades turcas, e tem humores. Maus humores, quando o vento sopra de Sul, prenúncio de tragédias na obra de Kazantzakis. Um vento quente, que trás areias de desertos longíquos e que não deixa dormir homens nem mulheres, perturbando-lhes os pensamentos.

Terra de revoltas e capitães assombrados pelos capitães de outrora, o mais impressionante exemplar desta espécie é o capitão Micaelis (que de resto empresta nome e título ao texto original), proprietário de um estabelecimento comercial, nos intervalos entre revoluções, e terror dos turcos, a tempo inteiro. Filho do velho capitão Sifakas, homem que deu um batalhão de mártires à causa da independência, vive na capital, Cândia, onde tem a loja já mencionada e a casa para onde se retira todas as noites e que partilha com a mulher, o filho mais novo e a filha, que se esconde do pai por ordem deste, desde que entrou na puberdade. O Capitão Micaelis leva a mais austera das vidas que se possa imaginar. Homem pouco dado a excessos, reserva na sua agenda apenas duas semana por ano, quando subjuga sempre o mesmo grupo de foliões a partilhar com ele de comida, bebida e música na sua cave. Mulheres nem vê-las, semeadoras de discussões que são.

A Creta do Capitão Micaelis não é uma Creta qualquer. Apanhada durante a ocupação otomana, sem que a Europa humanista ou a Rússia ortodoxa oiçam e atendam aos seus apelos de ajuda. Nem da Grécia depauperada de meios militares, fortuna ou influência política virá o auxílio para libertar a ilhar. Assim, em Creta sofre-se e luta-se como se pode, dando à ilha os verdadeiros cristãos que a libertarão, um dia, e celebra-se quando a mulher de um dos altos ocupantes de converte. Pouco importa que ela questione a beligerância cretense à luz do Envangelho de Paz que lhe serve de motivação religiosa. Creta é uma coisa, os cristãos outra.

Que almas se digladiam pois na Semana Santa em que se inicia a acção? Nuri Bei e o Capitão Micaelis, irmãos de sangue e homens que se odeiam profundamente. Homens condenados a defrontarem-se, pressionados pelos seus irmãos de religião, que prometeram procurar a vingança nos outros. Só que Creta é uma panela de pressão e o capitão Micaelis fogo demasiado forte. Com ele por perto, todas as outras personagens mudam de personalidade. Com ele no meio da acção a pressão aumenta até que é necessário que a válvula salte e Creta experimenta outra revolução. Fogem homens para as montanhas, morrem capitães, fazem-se capitães e os políticos entram em cena para tentar a paz e os onzeneiros entram em cena para aumentarem os seus lucros. Como eu dizia no início, demasiado fácil de encontrar paralelismos quase duzentos anos passados...

A escrita de Kazantzakis, ele próprio um filho da ilha, é como a figura do capitão Micaelis: austera, sem palavras desnecessárias, rude no falar e precisa no que deixa por dizer, sofrida e atormentada pelo fantasma de fazer justiça aos seus antepassados, transmitindo na perfeição essa dor que os filhos desamparados de uma civilização subjugada sentem. Através da pena de Kazantzakis somos levados a sentir essa dor, mesmo que nas suas obras ele renegue e vote ao opróbrio todos quantos os que preferem segurar a pena à espingarda, os que confiam nos livros sobre a ignorância, os que não fazem do sangue nas veias o veículo racional por detrás de cada uma das suas acções. Pela pena de Kazantzakis, a luta de Creta é muito mais do que a luta de Creta. Aqueles homens, a dada altura, não lutam pela ilha. 

É o velho Sifakas, no seu leito de morte,  que nos leva a descobrir por que se luta em Creta. É aquele cadáver que nos mostra os capitães de terra, mar e artes a relatarem as suas vidas de aventura onde lutaram não pela terra, não por religião, mas sim e apenas para poderem ser homens. Homens do sue destino, não ovelhas presas entre o cajado do pastor, as dentadas do cão e as mordeduras dos lobos. "Liberdade ou Morte", o lema debruado em tons escarlates sob o fundo negro da bandeira artesanal do capitão Micaelis, as únicas palavras que o velho Sifakas alguma vez aprendeu a escrever e apenas para poder escrever pelo seu próprio punho o seu testamento. Nas ombreiras das portas, nas esquinas da sua aldeia, na fachada da igreja, por aí foi o velho Sifakas e a sua lata de tinta, "Liberdade ou Morte", um testamento e uma maldição.

Liberdade ou Morte, o grito de Creta, o grito dos Homens, o lema inacabado com que o livro fecha, gravado que está indelevelmente na mente do autor. Seria fácil, nos tempos carneiros que vivemos de tecer considerações idiossincráticas sobre esta obra. Seria demasiado fácil. Tão fácil que não o vou fazer.

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