Lembro-me de ouvir contar histórias sobre o que ficou para trás. Lembro-me de palavras estranhas ditas com um eco de saudade como nunca senti. Lembro-me de olhares vazios que viajaram quilómetros sobre as águas que distam desse lugar lá longe, esse lugar donde só conheci ecos da guerra civil, do lixo nas ruas, da profunda corrupção. Lembro-me de tudo, mas não vivi esses momentos, não os posso compreender. Só que Dulce Maria Cardoso viveu-os como quem me contou esses momentos. Viveu-os de forma diferente certamente, mas viveu-os, e nas suas palavras fui levado a recordar as tardes em que ouvia falar de Angola e do que lá tinha ficado.
Não posso puxar para mim e para os meus o drama que este Retorno conta, mas o tom, a saudade, a mágoa, relembro terem sido presença em várias ocasiões. Se mais nenhum mérito tivesse, esta obra teve o mérito de me explicar a minha História. Se mais nada me transportasse para o livro, pelo menos uma dívida de gratidão lhe seria sempre devida.
Só que a minha História, a que chamei de minha, não é bem minha. Ela é a de muitos mais, ela é a de uma ferida que para muitos nunca sarou, tantos os que ainda hoje se ouve lamentarem, tantos os que hoje ainda choram o que se deixou e amaldiçoam o que os esperava, tantos e tantos Ruis dessa vida, tantos e tantos...
O Retorno conta a história de uma família de Angola desde a Revolução até sensivelmente finais do Verão Quente de 1975. É a história de um pai que ficou para trás e de uma mãe que foge na Ponte Aérea com os dois filhos adolescentes e os tem de criar num hotel da Linha. Conta as desventuras de quem se tornou estrangeiro no seu país, terra que nunca vira e que em tudo é diferente do que sempre chamara seu, conta algumas aventuras e tudo faz sem juízos de moral.
Acima de tudo é a falta de juízos que se destaca na obra. Não é uma obra saudosista, não é um julgamento a ninguém, é um relato apaixonado das forças que então moldaram a nossa História. O Retorno é um livro de História. É um livro da História que a História nos ensinou a julgar com bons e maus, e é um livro que fala de pessoas, com virtudes e defeitos. Não há vencedores n' O Retorno. Nem derrotados. Há gente que perdeu coisas e ganhou outras e gente que pensando ter ganho acabou por perder. Há gente. Há um povo. Não há apontar dedos. Lemos toda a obra e ficamos sem saber o que pensar. Não há dizer que foi bom, que foi mau, que podia ter sido diferente e ao mesmo tempo há quem diga que aconteceu tarde, uns que nunca deveria ter acontecido e outros ainda que devia ter sido diferente.
É um livro com dores de crescimento. Um livro onde um adolescente tem de cortar com o seu meio e acaba transplantado para um mundo que não é o seu. Um adolescente de quem é tão fácil gostar como censurar. Há a irmã dele. Há a mãe dele. Não há mais do que a memória do pai levado num jipe pelos pretos porque ele não lhes fez frente, mas que vai voltar, tem de voltar... Há um hotel cheio de gente, um país cheio de um cheiro a liberdade mas ainda tão amarrado a preconceitos. Há medo do estrangeiro, em particular do estrangeiro que não o é. Há esperança num futuro melhor, mesmo quando são negras a nuvens no horizonte.
Há uma escrita apaixonada, que abraça o leitor, que conta a quem não viveu esse tempo o que como foi ter de o viver, que dá os sapatos dos que vieram a quem nunca teve de os calçar e lhes mostra quão largos ou apertados, quão frios ou confortáveis esses sapatos foram e no final diz que foi assim, já passou, olhemos antes para o future. É um livro invernal que nos fala de esperança. É um livro que nos dá um nó nas vísceras e do qual gostamos e o qual guardamos num lugar especial na estante e que queremos voltar a ler. Nem que seja para recordarmos aquela voz carinhosa, aqueles olhos quase humedecidos que nos falam do que era a vida em Angola.