No preâmbulo a Carrie's Story, a autora confessa que sempre se sentiu seduzida pelo mundo da submissão e dominação, desde que nos seus tempos de infância lera Sade e a História de O. Não surge assim como nenhuma surpresa que este livro, escrito por encorajamento de pessoas amigas, apresente largos ecos dessas experiências, em particular da obra de Pauline Réage. Não é fácil escrever sobre assuntos de alcova. Os Bad Sex in Fiction Awards são um bom exemplo de como a capacidade de descrever cenas de cariz sensual não anda de mãos dadas com as capacidades literárias do seu autor. Recentemente, um sucesso editorial, transformado em sucesso cinematográfico, levou-me a questionar sobre para quando o Bad Fiction with Sex Awards e cheguei à conclusão que precisava de algo que me restaurasse a fé que, numa era liberal nos costumes, há quem se saiba servir dessa liberdade para escrever bem sobre libertinagem. E assim chegamos a Carrie's Story.
Resumidamente, neste conto Molly Weatherfield dá-nos a conhecer a evolução de Carrie no mundo das relações de dominação-submissão. Carrie é uma jovem perdida, à beira de se licenciar num curso com que não se identifica e que faz biscates como estafeta para ajudar a pagar as conas. Certa noite deixa-se encantar por Jonathan, homem mais velho e assente na vida, numa festa e às três da tarde do dia seguinte embarca então na relação referida. O ponto de partida para o conto é no entanto o momento em que Jonathan lhe comunica que a quer vender num leilão. Segue-se então a analepse para a referida festa e o crescendo da relação, relação essa construída em fins-de-semana na mansão dele em que ele dita as regras e ela as segue. Quando retornamos ao ponto em que Carrie concorda com a proposta do leilão, o conto muda de rumo pela primeira vez.
Se até aí a narrativa envolvia pessoas externas ao duo e às práticas do duo, envolvendo frequentes desabafos de Carrie, a partir daí deixa de haver espaço para personagens fora da dinâmica de dominante-submissa. O que sucede é que Carrie se muda para casa de Jonathan para que este possa dedicar todo o seu tempo a treiná-la para o leilão. Na prática tudo se assemelha a Roissy, mas em fraquinho e intercalado com o espírito analítico de Carrie a tentar racionalizar todos os actos. Sabendo das influências, não surpreende tal paralelismo. O momento seguinte de quebra na narrativa surge com a necessidade de Jonathan se ausentar, muito contra a sua vontade, por motivos de negócios. Muito contra a sua vontade porque neste ponto tem de tomar uma decisão sobre o treino de Carrie, ou o interrompe, ou a passa para outro dominante. Adoptando a segunda opção, outra escolha se lhe afigura. Com quem deixar Carrie?
Jonathan gaba-se de conhecer "um tipo muito melhor de pervertidos" do que aqueles que estavam na festa em que se conheceram e esta crise na narrativa é o momento ideal para os apresentar. Por um lado temos a antiga dominante-submissa de Jonathan, uma autoridade junto da tribo e uma das mais exigentes dominantes, por outro um tipo que tem uma quinta onde treina póneis, e não, não estamos a falar de equídeos! Para efeitos de fugir a uma versão suave da História de O, a narradora opta por enviar Carrie para a quinta, num atrelado para cavalos, com palha e tudo. A mudança na narrativa neste ponto é interessante e será aqui que a maior parte das opiniões sobre o livro começarão a ganhar uma forma mais tangível, de tal forma as cenas que se passam na quinta, com a alimentação, a escovagem, o dressage, as cavalariças e ainda actividades com charruas e charretes a serem dedicadas a e executadas por os submissivos que ali vão a pedido dos seus dominantes. É aqui que uma mudança muito grande se dá na personalidade de Carrie em que ela abandona a sua racionalização e passa a reagir por instinto. Depois da quinta, ela vê o leilão como uma oportunidade de se livrar de Jonathan, um mau dominante demasiado perdido nos sentimentos amorosos que sente por ela. Saídos do picadeiro é fácil o leitor sentir que o adjectivo apaixonado, quando aplicado a Jonathan, tem uma conotação pejorativa. É esse todo o tom do texto e é difícil não alinhar com ele. É indiscutível que depois das cenas do picadeiro, tudo o que Jonathan faça empalidece por comparação, e queremos tanto como Carrie que venha o leilão. Antes do leilão temos somos ainda prendados com cenas saídas orgulhosamente de Roissy, com toques de século XXI. O leilão acaba por ser um pouco despachado, mas todo o treino e os cuidados com a mercadoria que o antecedem são uma boa leitura.
Pessoalmente gostei do que li. A nível de erotismo, quem não é adepto do binómio dominação-submissão terá dificuldades em se sentir particularmente excitado com este conto. No entanto, penso que a autora consegue transmitir bem o balanço de forças inerentes a essas relações. Comparando com a incontornável História de O diria que este conto é mais cerebral. Enquanto que no clássico francês há um foco muito grande no aspecto físico, nos abusos perpetrados, na violação consentida em que as vítimas se convencem que gostam de ser abusadas para tolerar a violência dos actos, nesta Carrie's Story há uma maior racionalização dos passos, uma violência muito mais escondida. Enquanto que é fácil no primeiro caso imaginarmos uma sociedade realmente secreta, a sociedade secreta desde conto parece muito mais de brincadeira, muito mais consensual, as vítimas neste caso são menos vítimas e mais participantes.
Ao nível da escrita é bastante apelativa, sem ser um daqueles livros que se largam com dificuldade. Não há um esforço por romantizar nenhum aspecto das relações e evita a adverbialização e adjectivação em excesso. No fundo, o livro cumpre a sua função de restaurar a fé que há quem saiba escrever bem sobre assuntos de alcova, passem os quase 15 anos desde que foi publicado, mas apenas pode ser um clássico dentro de uma comunidade com interesses muito específicos, faltando-lhe algo que o torne mais de interesse para o público em geral.
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